Origens do Clube de Cthulhu

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Do Capitão Peter Vysparov para a Dra. Echidna Stillwell, 19 de março de 1949

Cara Dra. Stillwell,

Fui feliz o bastante de encontrar seu trabalho etnográfico sobre os Nma, que tenho estudado com grande interesse. Se puder lhe importunar com um relato próprio, que poderia ser de relevância para suas pesquisas. Durante o recente conflito no Pacífico (um oximoro peculiar!), eu fui enviado secretamente à área Dibboma na Sumatra Ocidental. Minha missão – que foi categorizada como operação psicológica – consistia basicamente de uma tentativa de manipulação cultural, tendo em vista desencadear uma insurgência local contra a ocupação japonesa. Espero que não lhe aflija indevidamente se eu confessar que seu trabalho foi um recurso crucial nessa empreitada, que envolveu uma comunicação intensa – ainda que patentemente exploradora – com a bruxaria Dibboma. Minha única desculpa é que tempos difíceis exigem dureza moral e até mesmo óbvias crueldades, eu obedecia a ordens e as aceitava como necessário.

Além de confirmar suas próprias conclusões, essas atividades me deixaram próximo de fenômenos para os quais eu estava cognitivamente mal preparado.

O que começou como um uso meramente oportunista do conhecimento Dibboma – concebido inicialmente como superstição nativa – transmutou-se incrementalmente em uma guerra feiticeiral contra as tropas inimigas. Em apenas duas semanas – entre 15 e 29 de março de 1944 – três comandantes japoneses consecutivos foram incapacitados por severos colapsos mentais. Em cada um desses casos, o processo de deterioração seguiu o mesmo curso rápido: de liderança disfuncional, passando por ataques violentos ao pessoal subordinado, até transtornos furiosos e delírios paranoicos, culminando em suicídio. Ao fim deste período, a ordem das forças ocupantes havia se desintegrado inteiramente.

Seria desonesto de minha parte esconder o fato de que os Dibbomeses pagaram um preço devastadoramente alto por este sucesso. Com base nesta experiência, eu não posso facilmente duvidar de que os feiticeiros Dibboma são, de alguma maneira, capazes de se comunicar telepaticamente condições extremas de dissociação psicóticas. É com grande relutância que eu aceito uma hipótese tão radical, mas explicações alternativas, tais como envenenamento, doença ou coincidência estendem a credulidade ainda mais.

Com sincera admiração,
Capitão Peter Vysparov

PS. Não posso deixar de notar que as datas em questão – assim como também as desta carta – são estranhamente lovecraftianas.

Da Dra. Echidna Stillwell ao Capitão Peter Vysparov, 23 de março de 1949 [Abreviada]

Caro Capitão Vysparov,

Obrigada por sua carta franca de 19 de março. Eu a achei verdadeiramente horripilante e, ainda assim, também fascinante. Aprecio que não pode ter sido fácil escrevê-la. Não tentarei esconder a grande angústia que seu relato me causou, adicionando, como o faz, um episódio tão terrível à história moderna destas pessoas cruelmente afligidas. Embora já suspeitasse que essa pavorosa guerra pudesse ter atingido ainda mais os Nma, é de fato arrasador ter meus pensamentos mais sombrios confirmados assim.

Eu estaria interessada em aprender mais sobre os detalhes da prática dos feiticeiros Dib-Nma antes de tentar responder à sua hipótese. Esteja seguro de que – depois de passar sete anos entre os Mu-Nma – eu não julgarei precipitadamente como selvagem ou fantasioso qualquer coisa que você comunique. No que se refere à questão das datas – que você indicou apenas elipticamente – eu assumo que você esteja se referindo ao que, nas latitudes setentrionais, constitui o período Equinocial da Primavera – do meio ao fim de março – que é tão enfaticamente salientado em O Chamado de Cthulhu de Lovecraft e que também – coincidentemente – abrange a zona intensa dos rituais temporais dos Nma. Esta cumplicidade há muito me intriga.

Como estou certa de que você está ciente, Lovecraft tinha uma obsessão peculiar com os Mares do Sul, uma coalescência temática de fascinação etnográfica quase hipnótica com o horror mais abismal e primitivo. Tentei me corresponder com ele sobre essas questões, mas descobri que este tópico rapidamente perfurava sua fina crosta de racionalismo arrogante da Nova Inglaterra, expondo uma corrente subterrânea de terror arcaico fortemente fetichizada, misturada com uma paranoia racial extrema. Quando ele começou a se referir à rica e sutil cultura dos Mu-Nma como ‘culto repugnante de selvagens dagonitas semi-humanos’, eu rompi a comunicação… Apesar deste argumento infeliz, eu considero as ficções do Sr. Lovecraft como sendo documentos da maior importância e acolho a oportunidade de discuti-las mais. Além disso, a minha própria Hipótese Neolemuriana intercepta sua visão terrestre e cósmica mais ampla em uma série de aspectos cruciais, particularmente na medida em que fatores culturais não humanos são vistos desempenhar um papel decisivo em desenvolvimentos históricos de larga escala.

Do Capitão Peter Vysparov à Dra. Echidna Stillwell, 3 de abril de 1949 [Excerto]

Cara Dra. Stillwell,

Temo que você esteja certa em suspeitar que eu reservei certos aspectos do meu engajamento com a feitiçaria Dibboma, talvez por medo do ridículo. O que foi omitido até o momento em meu esboço da psicose telepática – que agora relatarei – é o pathos original, por assim dizer, ou – nas palavras do oficial militar que eu era na época – a manufatura de munição oculta.

Não apenas eu descobri sobre o comando japonês ter sido destruído por um cataclisma psicológico – através de processos de coleta de inteligência tanto convencionais quanto decididamente inconvencionais – eu também testemunhei a montagem da própria arma. Na época eu não tive – e ainda não tenho – nenhuma dúvida que fosse de que a loucura que eclodia nos quartéis-generais japoneses locais foi a mesmíssima coisa que vi sendo preparada como um vórtex de poeira nos transes Oddubitas de uma bruxa Dibbomesa, que eu comecei a ver como meu maior trunfo tático e minha companheira mais valiosa (nesta ordem, eu confesso). Foi uma experiência de horror de marcar a alma para mim testemunhar essa descida meticulosamente deliberada até o estilhaçamento do eu – desintegração completa da personalidade – que ela, de alguma forma, atravessou e que ela chamava de despedaçar o espelho da existência. Percebi que esta expressão originalmente se referia à superfície da água parada, mas desde a chegada dos colonizadores europeus, os espelhos de prata têm sido altamente estimados, e sua pulverização investida com uma significação cerimonial imensa. A feitiçaria Dibbomesa não parece estar de forma alguma interessada em julgamentos quanto à verdade ou à falsidade. Ela perece, antes, estimar, em cada caso, o potencial de se fazer real, dizendo, tipicamente, ‘talvez possa ficar assim’…

De Echidna Stillwell a Peter Vysparov, 19 de abril de 1949 [Excerto]

Caro Capitão Vysparov,

Embora respeite a candura de seu relato, eu não posso deixar de abominar a necessidade que levou os Nma e suas habilidades de feitiçaria a serem concebidos e utilizados como meras munições em um conflito imposto a eles de fora. Do que consigo reconstruir a partir de sua descrição, isso parece marcar uma degeneração do demonismo e da feitiçaria temporal Nma em mera mágica, ou imposição de mudança de acordo com a vontade, neste caso a vontade em questão sendo a política geral e as metas estratégicas do esforço de guerra dos EUA, microcosmicamente representados pelo seu próprio ofício militar – evidentemente galante, competente e persuasivo.

Perdoe minha falta de ardor patriota, mas me parece uma indicação espantosa de decadência cultural e niilismo corrosivo quando uma bruxa Dib-Nma se permite ser empregada como uma assassina cruel, não importa como se avalie a causa assim servida. Tudo isso é uma questão do mais profundo arrependimento, embora não seja – na minha maneira de pensar – de culpabilidade individual. Como os Mu-Nma dizem em seus momentos mais desoladores: nove eshil zo raka – ‘O tempo está apaixonado por sua própria dor’.

Sua discussão sobre o transe-Oddubb não faz qualquer menção à anomalia temporal. Isto me surpreende. Os Mu tinham um imenso respeito por aquelas bruxas Dibba que descreviam como retornando do Oddubb-tempo por vir, e os Mu-Nagwi, ou bruxas-dos-sonhos, frequentemente alegavam encontrar esses volta-viajantes no Cofre dos Murmúrios, onde eles aprenderiam sobre tempos futuros. Elas diziam, contudo, que este tempo está se comprimindo e logo acaba, embora eu não imaginasse que o fim fosse tão iminente. Lembrar desse agouro me regressa a uma melancolia abismal, consolada apenas por um outro ditado Mu-Nma: lemu ta novu meh novu nove – ‘A Lemúria não passa como o tempo passa’. Eu tentarei pensar as coisas assim. Como você diz – com os Dibbomeses – shleth hud dopesh – ‘talvez possa ficar assim’.

Peter Vysparov a Echidna Stillwell, 7 de maio de 1949 [Excerto]

Aqui em Massachusetts estivemos reunindo um pequeno grupo de leitura de Lovecraft, dedicado a explorar a interseção entre a constelação cultural Nma, o contágio cthulhóide e sistemas temporais retorcidos. Estamos interessados em ficção apenas na medida em que ela é simultaneamente hiperstição – um termo que cunhamos para produções semióticas que se fazem reais – comunicações críticas dos Grandes Antigos, sinalizando um retorno: shleth hud dopesh. Esta é a ambivalência – ou loop – da ficção-Cthulhu: quem escreve, e quem é escrito? Parece-nos que o lendário Necronomicon – contra-texto feiticeiral ao Livro da Vida – é deste tipo e, além disso, que sua recuperação da Matrix Pandemônio Lemurodigital o acessa em sua hiperfonte.

Espero que seja supérfluo adicionar que qualquer envolvimento diretamente participativo de sua parte seria apreciado da maneira mais extravagante.

Echidna Stillwell a Peter Vysparov, 20 de maio de 1949 [Excerto]

É com alguma trepidação que eu lhe parabenizo pela inauguração do seu Clube de Cthulhu, se eu puder chamá-lo assim. Embora não esteja lhe acusando, de forma alguma, de frivolidade, eu me sinto obrigada a fazer o aviso óbvio: Cthulhu não deve ser abordado de maneira leve.

Minhas pesquisas me levaram a associar esta entidade ctoniana com a profunda inteligência terrestre, inerente no caldeirão eletromagnético da terra interior, em toda sua intensa realidade, potencialidade crua e perigo. De acordo com os Nma, ela é o plano da Desvida, um verdadeiro Cthelll – que está presa sob o mar apenas de acordo com uma perspectiva limitada – e aqueles que se dispõem a traficar com ela o fazem com o maior respeito e cautela.

Que sua cidade de R’lyeh, submersa no Pacífico, esteja ligada a uma cepa-cultural lemuro-muviana parece muito provável, mas a suposição de que ela jamais foi uma habitante da superfície, em um sentido que entenderíamos de maneira direta, só pode ser uma má interpretação absurda. É muito mais provável que a ascensão de Cthulhu – como aquela da Kundalini, como outrora era entendida – é rebaixamento e submersão, uma restauração do contato com intensidades abismais. Por que Cthulhu jamais viria à tona? Ela não necessita de resgate, pois tem sua própria linha de escape, lançada através da profundida. Muito disto se relaciona aos ensinamentos ocultos dos sub-chakras nas zonas de influência Indo-Lemuriana.

Hiperstição me parece uma cunhagem muito intrigante. Pensávamos que estávamos inventando, mas todo o tempo os Nma nos diziam o que escrever – e através deles…